sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Das vantagens de ser louco

Andava à noite pelo mesmo caminho escuro onde já fôra assaltado. O corpo cansado e a cabeça latejando de problemas.
Justo na curva onde não há sinal, depara-se com um louco maltrapilho a falar, parados em meio aos carros, sem ter para onde fugir.
O louco vira-se em sua direção e dirige-lhe a plenos pulmões seus impropérios incompreensíveis.
A distância entre ambos não era tanta.
Devia correr? A prudência indicava-lhe o caminho do medo.
Poderia simplesmente fingir ignorá-lo e esperar de canto de olho o que viesse a suceder.
Aconteceu que deixou escorrer dos lábios um sorriso macabro e olhou para além do fundo dos olhos do louco.

"Se me roubar a paciência e me tirar do sério, quem tem que ter medo de surto é ele!"

Eu não sei ser sentado

Queria escrever... mas estas sólidas paredes brancas me encardem o pensamento.
Queria ler ... mas ao longo do ínfimo percurso entre o quarto e a sala, minha atenção se perde.
quem sabe ouvir música? Pena que qualquer expressão de sentimento no casulo me adormece.

Vou tentar varrer o chão...mas a poeira me entranhou a carne e fincou meus pés no vão.
E se olhasse
as pessoas na janela de janelas infinitas?
Hoje não.
Eu espio, espio, mas ninguém vai me alcançar.

Preciso me esticar... e se não mais couber aqui?
A respiração rareia... é o ar parado que não quer mais entrar.

Então escancaro as portas e saio.
Eu não sei ser sentado.

E sentado neste trem
escrevo, leio, ouço, balanço e respiro.
A caminho de onde não sei.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Baile de máscaras

Incontáveis vezes entramos naqueles salões mágicos. Acreditava conhecer melhor do que ninguém seus códigos. Era um campo de batalha lúdico, repleto de crianças brincando de faz-de-conta. Mas um dia você finalmente descobre o perigo à espreita. Os salões se alimentam de beleza e juventude. Este é seu poder encantatório.
Um belo dia você novamente adentra os salões, só que ciente do inclemente transcorrer do tempo e reconciliado com as pequenas imperfeições que te nomeiam. A brincadeira perde o sentido. As crianças deixam escapar seus pesados grilhões. Todos presos à coreografia da felicidade instantânea e eterna.
Penso: Talvez o amanhecer será nublado.
E livre da fantasia escravizante, eis que pela primeira vez vislumbro alguns poucos adultos perdidos no reino do nunca.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Ilusão de óptica

Acordou da vontade de dormir. Ainda desamparado, mas refeito da miragem perturbadora. Lembrou-se de uma experiência de criança. Lera em algum lugar sobre um ritual simples. À meia-noite em ponto de uma sexta-feira, trancou-se no banheiro e olhou fixamente para o espelho por alguns minutos a fio. Teve a nítida impressão de que a face no espelho adquiria certa malícia assombrosa, como se quisesse seduzí-lo e zombar dele a um só tempo. Nunca ousou repetir a brincadeira para tirar a dúvida.
Agora adulto, sabia que alguns olhares desconhecidos quando fitados por dado período também abriam portais perigosos. Mas não tinha mais medo da brincadeira. A cada nova partida, encarava seu reflexo com mais coragem...até o momento em que os olhares se confundiriam e a imagem fantasmagórica sucumbiria à malícia zombeteira do olhar real.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Amor Vermelho

---Querida, não seja ingênua. O amor não vem de graça. Sabe o motivo da confusão? Você aguarda silenciosamente por um pai e/ou uma mãe que te ofereçam colo, segurança e conforto sem cobrarem nada em troca.
---Que isso? Deus me livre! Eu jamais sentiria atração física pelos meus pais!
---E quem disse que amor e sexo andam de mãos dadas? Já pode ir embutindo o sexo no preço do amor. Não confunda segurança e comodidade com prazer. O sexo é voraz. Com pica ou buceta entre as pernas, come-se o outro. Entregar-se também é uma forma de alimentação. No fundo, todos extraem os néctares de que precisam. Seja de si mesmo ou do outro.
---Humm...Mas qual o preço, então, do amor de pai e mãe, já que nele o sexo não entra na conta?
---Este é o mais caro de todos! Você paga até o último dia da sua vida em análise e ainda morre na pindura.
---Isso tá me cheirando a dor de cotovelo. Nunca experimentou o amor verdadeiro?
---Todo amor é ficção, querida. Verdadeiras são as contas. Sem uma reserva em caixa, você vai à banca rota. Se for compulsiva então, tá fudida e mal paga. Mas eu nunca disse que não vale à pena bancar pra ver. Nunca pagou caro por algo que quisesse muito? Quanta gente é mais feliz no vermelho?

sábado, 17 de outubro de 2009

Meus pêsames

Então acabou. Um embrião abortado. Duas semanas não deveriam ser suficientes para deixar mágoa e decepção onde em tão pouco tempo antes não havia nada. Mas a mais inerte das estruturas uma promessa vã abala.
Respiro fundo. O que foi isso?
Descubro que a gestação interrompida não foi da semente de outrem, mas estive prenhe de mim. Entregar-se, ainda que por breves instantes, desperta virtudes adormecidas. É daí que escorre os leites das mães adotivas.
As cidades inundadas estão vazias. Eu vagava acostumado a seu vai-e-vem. E você se acredita vazio também. Quando a ilha e o porto seguro estão em seu navegante.
Para onde quer que se sonhe ir, o ponto de partida é sempre o mesmo. Este nunca te abandona.
Morre o feto. Precocemente querido. Nasço eu. Uma vez mais perdido. E ainda assim, mais amado. Por seu novo filho.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Não, meu bem, não adianta bancar o distante: lá vem o amor nos dilacerar de novo*

eu fico me lembrando daquele dia que você disse que a gente não tinha jeito de ficar junto, Marcel.
eu lembro como senti alívio de pensar que você estava gostando de outra pessoa e que eu, finalmente, estava livre de você, daquele sentimento escravizante.
eu sempre soube que a gente não nasceu pra ficar junto mesmo.
eu sei, na hora que a gente se reencontrou, eu não te quis, é verdade, por que quando você me quis, e foi sincero, já era tarde demais, eu tinha mudado.
mas sei, também, como acostumei ter você por perto. você dividia comigo o sorvete e o peso das relações frutradas que tínhamos vivido. aquele nosso ensaio de namoro foi só mais um...
eu gostava de deitar a cabeça no teu ombro, quando estava do teu lado e gostava de sentir aquela coisa familiar que se perdeu faz tempo, mas que, pareço, cabeça no ombro, por um instante, recuperar.
hoje eu rio, mas na época eu sofria, por que você estava comigo e com as outras. eu aprendi, com esse teu tratamento, a te tratar de um jeito que tanto faz.
nunca foi vingança, nem maldade... só indiferença. a gente fica um tanto indiferente quando aprende a desamar.
a gente ficou machucado um do outro. acho tudo isso super descabido de dizer, agora, depois de tanta mágoa, mas eu queria me curar.
hoje eu sei que todo mundo carrega uma dor, por isso fica chato, ressentido, vira bandido, ou vítima. hoje em dia, eu respeito, cada um carregando a sua dor atravessando a paulista.
se tu se lembrar de rezar, reza por mim, pro meu coração cicatrizar. quando eu lembro de rezar, certeza, rezar por ti.
eu sei, que to dizendo tudo isso... é por que faz tempo que a gente não se fala, mas o que eu queria mesmo era o telefone da bárbara.
o gustavo vai dar uma festa na casa de praia e eu vou perguntar se posso ir com ela.

Beijos, Joana.

* Citação do Caio Fernando Abreu; Texto de Deise Anne - http://muitomeagrada.blogspot.com/

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Tempo ao tempo

Ela nunca desejara tanto ser plenamente ignorante. Tapadinha, mesmo. Ele lhe dizia: ---Calma! Nos conhecemos há pouco...dê tempo ao tempo.
Nesses momentos, olhava para a íris dos olhos dele. Não eram os olhos que enxergava. Era o futuro. Um futuro que não valia a pena prever...
Amou-o muito antes de conhecê-lo. O que ele não sabia é que era um personagem. Ela desejara cada reentrância de seu corpo imperfeito, os tons de sua pele, sabia as frases que diria, como se vestiria, conhecia os passos de seu caminho.
Uma situação em especial deu-lhe a certeza do que pressentia. Entrava na casa de Marcel pela primeira vez. Era domingo. Mas não era mais um domingo de todos os domingos. Porque em todos os domingos ela tinha a estranha sensação de que alguém estava fazendo, pensando e dizendo coisas que pertenciam à sua vida. Era como se faltasse um ingrediente mítico. E estava grande demais para acreditar em contos de fada e histórias da carochinha.
Mas tão logo Joana pisou no quarto, Marcel mostrou-lhe uns vídeos que pesquisara na internet. Naquele momento, ela teria de se pronunciar de fato sobre uma de suas conversas imaginárias. Opinaria sobre as músicas que não encontrava porque precisariam ser compartilhadas.
Antes mesmo do cair da tarde, vieram as discussões. Uma seguida da outra. Marcel acreditava piamente tratar-se de caprichos, provavelmente contornáveis.
Ela desejou mais que nunca a ignorância. Não precisava conhecê-lo a fundo. Nem outro dia sequer. Ele era um personagem meticulosamente criado. Impossível dizer-lhe que ela já podia sentir a flechada em seu calcanhar...A flecha estaria embebida no único elemento que lhe escapara em seu Adão. Uma minúscula dose mortal da realidade que o trouxera à vida.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Bagagem extra

Sentado no divã, desabafou ao longo de 2 semanas, em quatro sessões de 50 minutos, uma série de questões desconexas. Precisava dizer quem era e como tinha se perdido.
Os problemas diários não o atormentavam mais do que de costume. Ele queria dizer que seus momentos mais felizes foram frutos de opções insensatas. E que tinha medo de ter desistido do incerto. Em alguma curva do caminho parecia melhor esperar o tempo passar. Estava cansado. Nada além disso.
Não contou nada de novo, nada que não soubesse de cor. Como a repetição de fatos ancestrais o ajudaria a encontrar-se?
Não era o que dizia. Havia um peso invisível. Um peso em formato de gente. E o peso o expulsara de si.
Resolveu sair um pouco do casulo. Mas não eram justamente essas escapadas que o levaram ao divã?
Por um momento sentiu que não tinha mais o que dizer. Precisava viver. A análise lhe parecia muito com a escrita. Escrever era um pouco como afogar-se. Você congela o tempo e esse poder lhe faz perguntas em silêncio. Se escrever e analisar-se eram a pausa da vida, como conciliá-los todos?
Ainda haveria algum espaço para a expontaneidade lá fora? Sentia-se ridículo. Então ser adulto era isso....Arrastar correntes, tomar remédios, lamber as feridas.
Terça-feira, meia-noite. Uma vez mais resolveu entregar-se ao ritual profano. Jurou que chegaria sóbrio, ao menos.
Entrou. E ainda sóbrio, sentiu uma sensação verdadeira. Não era fuga. Ele queria estar ali. De alguma forma aquilo ainda fazia parte dele. Não era mais o mesmo e sabia disso. Sabia disso.
Pediu uma garrafa de champagne. Tentaria confiar nas bolhas douradas uma vez mais, embora mesmo elas já o tivessem traído.
Ele não estava ali à toa. Repetia o ritual que passara a temer, mas estava um pouco mais leve. E fazia toda a diferença. Expontaneidade era confiança. O ritual era o mesmo, os participantes eram os mesmos, o coro era o mesmo. Mas ele tinha escolhido estar ali. E era dono de si. Daquele que não conhecia e que havia entrado em total letargia.
Encontrou os olhos verdes. Apenas sinalizaria o reconhecimento. Eu não te conheço, mas te vejo. SEI que você existe. Mas não se entregaria a jogos.
E quando se falaram casualmente, uma porta se fechou e outra se abriu. A partir dali, voltava a viver a ficção.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Canção

Era incapaz de concentrar-se em qualquer coisa que fosse ouvindo música sozinho. E as músicas de que gostava faziam sua pele incandescer e palpitar. Não era uma sensação agradável. Era uma forma de dor, ferida. O tempo constante interrompia o traçar do destino e seus contornos jamais vistos ganhavam volume, peso, força e o cutucavam, comprimiam, sufocavam.

Leu no jornal sobre o show do novo cantor. Bateu uma curiosidade pouco habitual. Escolheu uma música aleatoriamente e esperou.

Lágrimas brotaram de uma comporta abissal. Enxergou seu rosto mergulhado apiedando-se onisciente de tudo aquilo que ele retinha e não compreendia.

Quatro frases infantis em francês. Duas perguntas. Nenhuma resposta.

A inocência do passado perdido dava as mãos àquele estranho sem mémoria reconhecido no presente.

Duas perguntas sussurradas repetidas vezes. Onde não alcançava, alguém o esperava.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Mi casa, su casa.

Na cozinha, procurou a faca ideal. Difícil tarefa. Numa casa com não mais que meia dúzia de pratos e umas poucas panelas jamais usadas, a escolha de um talher digno de cortar sua própria carne não é imediata. Um dia se perguntara qual seria a sensação da tomada da decisão. Coração batendo acelerado como um ator numa estreia? Nó na garganta, daqueles de criança sendo obrigada a engolir o choro?

Sentia tranquilidade. Era a paz da certeza, da impossibilidade de se voltar atrás.

Pensou em trocar a faca por uma gilete. As únicas lâminas que tinha em casa eram do aparelho de barbear rosa que usava para se depilar. Riu consigo mesma. Melhor assim. Não gostava de giletes. Imagina a situação: você está prestes a dar fim a sua existência e, segundos antes, acaba ferindo os dedos e soltando um ---PUTA QUE O PARIU! com toda raiva, enquanto chupa o sangue que brota.

Vamos logo com isso, afinal de contas, não planejei nenhum ritual prolongado. Tem que ser no piloto automático. Corta-se os pulsos, bebe-se uns tranquilizantes junto com uma garrafa de vinho, deita-se na banheira com água bem quente e pronto! E eu aqui, preocupada em achar uma porcaria de uma faca...

Alô? Gustavo? (O que será que ele quer justo agora??)
Se eu tenho planos pra hoje? Humm...mais ou menos, por que?
Festa na casa de uns amigos de amigos em Santa Teresa? Cara...sei lá.

---- Pô, não pensa muito, vamos Ju! Tô passando aí agora pra te pegar, não quero nem saber! Põe qualquer roupa que em 5 minutos tô tocando teu interfone.

Isso só pode ser piada. É humanamente impossível tirar a própria vida sendo obrigada a argumentar trivialidades antes com um amigo.

---Pô, Gustavo maneira essa casa. Explica direito quem tá dando essa festa que não entendi nada.

---Ju, não conheço bem essa galera, não. Sei que três meninas e dois caras racham o aluguel, cada um é de um estado. A Cris Plotkowsky é do Sul e faz mestrado em psicologia. Ela tá comemorando a qualificação que rolou hoje. A Cris Laffer é de Brasília. Em dois dias ela viaja pra Austrália com bolsa. O Ricardo é do Recife, trabalha com artes plásticas. A Manu parece que é tradutora e faz cenário numas peças. Se não me engano é mineira. O Eduardo faz especialização em oncologia, um lance com pesquisa em laboratório. Depois você pergunta de onde ele é.

---Essa vista da varanda é incrível, né?
---Com certeza. Eles deram uma puta sorte em descolar essa casa. Deve ser por isso que vivem dando festa.
---Sério? Os vizinho devem ficar loucos.

Um dos convivas escuta e entra no papo.
---Que nada. As velhinhas do andar debaixo visitam parentes todo fim de semana e só voltam na segunda.

---Ju, essa é a Cris Plotkowsky.
---Prazer, Ju. Adorei seu vestido.
---Prazer, Cris. Tô paixonada pela sua casa.

---Então aproveita a festa. Vou pegar teu email pra gente manter contato, volta e meia rola uma reuniãozinha da galera aqui. Deixa eu te apresentar pro resto do pessoal. Você mora com quem?

---Sozinha, num apê de um tio na Gávea.

---E você curte? Nessa vida de estudante nômade, me acostumei a viver rodeada de tudo quanto é gente. Nem sei mais se aguentaria viver sozinha.

---Até hoje eu pensei que aguentasse bem.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Deitado no divã

A psicanalista me lança seu olhar de interesse complacente.
Descobri a psicanálise na faculdade e apesar do imediato fascínio, nunca consegui me afastar da ideia de que a artificialidade desses encontros se fundava em duas bases: na falta de autocrítica de certas pessoas conjugada a uma carência afetiva latente. Numa comédia romântica, ouvi uma piada que traduzia perfeitamente o que eu pensava.

---Contou isso para seu analista?
---Claro que não! É muito pessoal....

Descubro um mapa-mundi pendurado. Quando criança, acreditava jamais ser capaz de andar na rua sozinho. Sentava no ônibus tentando memorizar percursos familiares, mas voltava pra casa derrotado. Este era um de meus maiores temores. Um dia a porta do meu cativeiro seria deixada entreaberta e eu não saberia como partir.

Olho para o movimento dos ponteiros no grande relógio analógico na parede. Demorei tanto tempo para compreender seu trabalho e em breve as crianças o apontarão nos museus como um exótico artefato pré-histórico.

Faço um exame de consciência. O que vim fazer aqui mesmo?

Sim, há problemas pesados demais para se carregar sozinho. Outros parecem inofensivos. Escorrem lentamente por entre as frestas de nossos poros e corroem em silêncio todo nosso interior, como os cupins-de-solo que devoraram meu armário embutido.

À mente surge a imagem de alguns de meus sóbrios amigos. Todos analisados. Os graus de compromentimento com a existência são muitos. Mariana faz análise para a morte da avó, acupuntura para o fumo, cólicas menstruais e ansiedade e yôga para sentir-se menos sedentária. Fábio recorre à análise porque tem raiva de ser pobre e se tivesse mais dinheiro, experimentaria todo esse universo supérfluo-pequeno-burguês que abomina. Juliana se analisa e uma vez por ano pede seu mapa astral completo e gravado em fita como presente de aniversário, toma anfetaminas, às vezes uns ansiolíticos, reveza uns 4 tipos de remédios para dormir, faz pilates, dança contemporânea e recentemente descobriu uma mãe-de-santo ótima em Vaz Lobo.

Eu adoto órfãos. Tenho uma coleção deles. Vão de crianças a velhos senis. Umas gracinhas.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

A ficção só tem graça na ficção.

Estou a procura de um leitor ou telespectador...de público. Não, não sou narcisista, nem sonho com a fama. Descobri na verdade que sou um personagem de ficção. Sem uma plateia que acredite em mim. Daí você me pergunta: E não somos todos? Humm...sei não.

Provavelmente você assiste ou já assistiu a algum seriado de televisão norte-americano. E riu, chorou, foi seduzido ou sentiu ódio mortal de mim. Eu sou aquele que não se encaixa, que subverte as convenções, que perde o amigo mas não perde a piada, capaz de matar, roubar, de vender o próprio corpo, simplesmente por desconfiar de manuais de instrução, de etiqueta. Acredito no bom e velho método de tentativa e erro.

Então, me reconhece agora? Nós apimentamos as histórias, as recheamos, não somos os mocinhos enamorados ou os vilões sociopatas. Somos os maliciosos, eternamente insatisfeitos, alternando estados de espírito mil. Jogamos com as possibilidades.

Mas não existimos na vida cotidiana. Somos uma ficção. Somos uma ficção tão perfeita que as pessoas chegam a acreditar que nos conhecem, que já nos viram ou que conviveram conosco. Só que no mundo real, onde o relógio é inclemente e todos tem seu papel, somos sussurros, calafrios, tentações furtivas e etéreas, nunca materializadas, encarnadas.

Arrebatamos apenas na existência imaginada. Do lado de cá, perdemos todo nosso encanto. A dinâmica da vida nos transforma em mero incômodo.

Suspeito que Oscar Wilde e outros como ele tenham sido roteiristas de auto-biografias inventadas. Seus epítetos jamais foram pronunciados em situações reais. Porque um mundo que acolhesse tamanhas provocações ruiria em pleno caos numa sucessão de poucos diálogos.

E assim eu vago....buscando provavelmente meu autor. Ou tentando encontrar a passagem que me reconcilie com o universo dos seres imaginados.

terça-feira, 21 de julho de 2009

quem sabe?

Esperança e auto-estima, virtudes que movem o mundo.
Não preciso de esperança. Não tenho nada a temer a não ser meu potencial de auto-destruição.
Já o teor de auto-estima me é indecifrável. Sou fantasmagórico. Entro e saio do meu corpo, ligo e desligo os botões da consciência ao meu bel prazer. Vago pelas ruas e observo as pessoas implorando: Estou aqui. Aceite-me. Concorde comigo.

Compreendam: Não quero casar com vocês. Nenhum de vocês. Nunca.

Fui abandonado na porta da igreja ao nascer. Não preciso retornar a ela para selar minha felicidade eterna. Sou minha própria religião.

A felicidade eterna me enjoa. Deixa eu te experimentar. Só um pouquinho. Só uma parte de você.

Duvide de mim, dos meus sabores, das minhas intenções.

Quando eu for certeza, quando tu fores certeza, certo também será nosso rápido adeus.

E que nosso reencontro seja uma miragem. Sem o peso de culpas e frustrações.

Não sei se gosto de mim. Não sei se gosto de você.

Se não chegarmos a conclusão alguma....quem sabe nos amemos sem saber.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Dois dedos a mais.

Lembrou-se de ter ouvido alguém dizer que a diferença entre um remédio e um veneno estava na dose. Dita de forma prosaica, a frase soara-lhe de uma poesia profunda e arrancava-lhe agora um discreto sorriso. Fora transportado de súbito para a infância, quando extraía desde muito cedo todo o afeto de que carecia da devoção suprema ao conhecimento.

---Fumar causa câncer. O cheiro é desagradável. Por que diabos alguém compra cigarros?

Preservar a própria vida, ao contrário do instinto de sobrevivência nos animais, deveria ser uma prova da racionalidade humana. Ou o principal indicador da sanidade de um indivíduo.

Até que num dia como outro qualquer sua bela, jovem e saudável esposa vai ao dentista fazer um tratamento de canal. Tão logo a broca atinge seu alvo, uma rara bactéria é liberada na corrente sanguínea e provoca um ataque cardíaco letal quase instantâneo.

Mas cada minuto de vida é precioso. Existem tantas metas a serem batidas, novos desafios, quem sabe mesmo amores.

Não, a ideia de um destino pré-determinado não encontrava apelo em Antonio. Os livros enfileirados lado a lado nas incontáveis prateleiras da biblioteca não cansavam de repetir-lhe as diferentes crenças alimentadas pelo homem de acordo com sua época.

Tampouco era a felicidade do indivíduo medida por seu tempo de vida. Caso assim fosse, toda criança nasceria infeliz e os velhos morreriam explodindo de insustentável alegria.

Claro, cada um teria sua resposta para o mistério da vida.

Ele acreditava na dose. E foi pensando nela que virou dois dedos a mais antes de deitar-se.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Corpo estranho

Deram uma intensificada nos meus treinos de natação e num dia desses, quando menos esperava, encontrei o corpo de um cara gostoso e metido a besta me encarando no espelho.
O telefone toca. É uma amiga há muito desaparecida convidando para um show de uma ótima orquestra de música latina na Lapa.
Estava não muito empolgado, mas o tal corpo trabalhado logo veio me atentar:---Para com isso, vamos dar uma volta.

---OK. Lá vamos nós. Mas dessa vez não passo nem perto de bebida! Chega dessa brincadeira de explorar semi-consciente os insólitos seres que povoam a escuridão.

Não contava com o fato de que minha amiga é que ficaria derrotada no primeiro copo de uma caipirinha mais que vagabunda caprichada na cachaça 51...

Falei com o corpo: ---Essa noite promete. Além de você, me atormentando com sua lascívia hedonista, ainda vou ter de carregar outro corpo pra cima e pra baixo...mas amigo é pra essas coisas!

Minha amiga resolve de súbito levar seu corpo inerte para casa e me abandona de vez. Olha que o show propriamente dito nem havia começado.

Restou-me ouvir o corpo ardente dizendo: ---Nem pense em ir embora! Fica aí, cara... Você não vive se prometendo que vai passar a sair mais sozinho? Deixe de ser bundão...Aproveita que tô aqui contigo. Quer companhia melhor que a minha?

O problema é que também ciceroneava o sóbrio, que em tudo repara e se entedia em átimos de segundo. E o tal corpo infernal não nos dava sossego.

Todos ao redor fumavam sua maconha e requebravam os quadris como si fuera una harmoniosa comunidad celebrando a primeira colheita do ano em noite de lua cheia.

Ai, deus! Que falta a bebida faz. Será que suportamos esta provação?

Quieto num canto, sou alvejado pelo mais bizarro dos seres possíveis. O corpo falastrão logo se adianta: ---Nem repare. Somos muita areia pra esse caminhãozinho.

Resolvi dar uma volta. Sabia que dali a pouco, tocasse a música que fosse, o sóbrio ia ceder lugar ao mal-humorado para não mais voltar.

Deparo-me por coincidência com o ser que a essa altura mandara qualquer resquício de discrição às favas.

Nesse momento, o corpo de Adonis, o sóbrio e o mal-humorado instauram uma conferência para debater a audácia da criatura em questão.

Deixei eles se entretendo uns aos outros e resolvi me apresentar.

---Oi. Você me conhece de algum lugar?
---De vista. Você também não é ator? Te vi numa festa de uma galera do teatro.

Independentemente das opiniões do corpo de Adonis, do sóbrio e do mal-humorado, fora os outros mais que acaso surgissem e resolvessem dar sua contribuição; tenho paciência nula para artistas em geral.

Despretenciosamente, a criatura me diz: Vai fazer algo no sábado? Podemos ir a alguma exposição...

A partir dali, não sei a quem dei ouvidos...Mesmo tendo deixado o bêbado trancafiado em casa.

Só sei que compartilhei com todos eles a dose cavalar de carinho que recebi e que nem suspeitava mais encontrar. Ainda mais naquelas circunstâncias e de forma tão gratuita e espontânea.

Justo quando estava convencido de que me bastaria estar acompanhado do corpo de Adonis.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

foi mal, rimei...

Eu moro aqui, onde todos veneramos a praia, o chinelo, a malemolência, o chopp, o bronzeado.
É também a hollywood tupiniquim, a meca de nossos aspirantes ao estrelato.
Só que hoje minha vaidade meio que desceu pelo ralo.
Acordei o mais ordinário dos homens. O mais cordato dos escravos.
Pertenço a estas pairagens, sim, mas não estou mais aqui, de fato.
Talvez eu perca minha valiosa cidadania de uma vez por todas.
É possível amar humildemente, ser feliz no anonimato?

sábado, 30 de maio de 2009

Orientação Vocacional

Andava pela rua e como se fôra atingido em cheio por um raio, sentiu a noção de felicidade escapar-lhe por completo. ---Devo estar ficando louco, não pode ser outra coisa.
A síndica o previniu sobre o atraso do condomínio. A televisão pifou. Soltou uma gargalhada espontânea que percorreu-lhe o corpo. ---Meu Deus, o que é isso? Possessão?
Tinha de encontrar alguma forma de voltar a si. Nada parecia preocupar-lhe. Acabou pedindo refúgio à bebida. Tomou um porre daqueles. Quebrou tudo no bar, xingou quem ousasse respirar no recinto de tudo quanto era nome.
Acordou pelado na delegacia, sem a mais vaga lembrança do dia anterior. Como comprometeu-se a pagar pelos prejuízos, o dono do bar já acostumado ao ofício não deu queixa e logo o liberaram.
Voltou pra casa. Tomou um banho gelado. Deitado, masturbou-se e resolveu experimentar o próprio gozo. ---Hummm...ontem fui um alcoólatra baderneiro. Hoje vou ser o que?

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Já vai começar...

Eu pude ver o exato momento em que envelhecemos. Olhávamos um para os outros cúmplices de algo que havia irremediavelmente ficado para trás. Cada um a sua maneira, nos associamos recentemente ao mesmo clube. Todos desfrutávamos da acidez de seu status. Sentados lado a lado na escuridão solene do teatro, nossos corações não dispararam quando as três campainhas tocaram ou quando a pomposa cortina se abriu. Estávamos prontos para assistir ao que quer que fosse...

Janaína, a negra estridente esculpida em forma de cintura, era agora o retrato da matrona de voz dócil e domesticada. A virgindade que tanto cultivara fôra-lhe arrancada a fórceps. E não em sua aguardada primeira vez, mas numa clínica clandestina numa rua arborizada do Grajaú. Os dias escorriam por entre seus dedos grossos juntos com a água ensaboada da louça. Ela sequer sentia ódio do marido ou piedade por si mesma. Estava satisfeita em acordar um pouquinho mais tarde a cada dia.

Mariana tinha um currículo dos mais invejáveis. Mas ele não continha casamento algum. E a simples pronúncia da palavra lhe parecia mais e mais ridícula com o passar dos anos. Vestira tantas mulheres para ocasiões especiais. Mas não via mais graça em gastar seus figurinos nos finais de semana. As promessas vãs das noites não a seduziam mais. Estava satisfeita em dormir um pouquinho mais cedo a cada dia.

Eu tinha tantos diplomas ocupando espaço nas gavetas que nem sabia o quê responder aos questionários que indagavam: Ocupação? Eu entendia todas as línguas sem tradução, só não tinha mais o que dizer em nenhuma delas. Estava satisfeito em digitar exatamente as mesmas palavras na internet, varando noites e noites a fio.

Mas nada disso realmente importava de fato. Suspiramos, nos demos as mãos. Um novo ato estava prestes a começar...

segunda-feira, 18 de maio de 2009

As faces do desejo

No começo, a curiosidade. Cada pessoa na rua corporificava uma espécie viva diferente, com suas reentrâncias e saliências, gestos e expressões que carregavam uma multiplicidade de significados difusos. Ainda não se notava a rigidez dos rituais que delineariam mais tarde as paisagens do mundo.
Um dia qualquer ele se surpreende com a invasão de milhões de autômatos sem face reproduzindo tarefas periódicas. Correu para o espelho mais próximo. Deparou-se com a imagem de um alienígena disforme. Era aterrador. Estava sozinho num planeta improvável.
Então veio a fome. Irrascional. Passava incontáveis horas à espreita, rastreando qualquer presa potencial. Nenhuma delas pacificava seus instintos. Era incapaz de compaixão. Devoraria o viço da última das carnes.
Travou batalhas sanguinolentas em suas caçadas. Cada cicatriz de seu corpo aperfeiçoava suas técnicas de combate e domesticava seus medos.
Refugiado numa caverna sombria, pensou ouvir uma voz suave e acolhedora. Encontrara alguém que conhecia sua língua materna ou estava simplesmente delirando?
Sonhou brevemente com uma vida sem sobressaltos. Até quando teria forças para alimentar-se sozinho?
Perguntou o nome da voz que lhe chegava. A resposta foi a última lembrança antes de seu fim.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Vivendo a ficção

Ninguém mais era obrigado a roçar em quem quer que fosse. Transeuntes anônimos sem destino em perpétuo estado de colisão eram vestígios de um passado remoto. Ondas e mais ondas preenchiam as dimensões levando e trazendo dados dos tecelões da personalidade na velocidade da luz.
---Nas últimas 24 horas engordei 400 gramas. Estacionei na página 85 de "Mrs. Dalloway". Consumi 20.000 litros de água. Respondi a 748.371 solicitações. Incorporei 529.242 identidades a minha esfera.
Todos estavam interconectados em algum nível. Não havia vãos na teia. O falso, o desconhecido e o ausente foram extintos por todo o sempre. As incertezas eram reproduções de mitos antológicos.
Ele jamais supusera que os rastros de sua vida prosaica serviriam para ilustrar os compêndios ficcionais do amanhã onisciente.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Os Movimentos

Deve ser falta de senso de direção. O meu é péssimo. Você pode fazer um mesmo percurso comigo 500 vezes seguidas que vou te seguir despreocupado, sem a menor ideia de onde estou.

Porque em matéria de libertação, para alguém que foi educado anos a fio num colégio interno de freiras em plena década de 1980, Henry Miller e Anais Nin podiam ser meus confidentes na idade adulta. Mas o gosto de se deixar dominar pelos sentidos ou pela libido hoje em dia é meio insosso. Toda experiência é instantâneamente nomeada ou debatida à exaustão. Virgens e curiosos negociam e pactuam contratualmente o mais banal dos atos. E o pudor é uma mera formalidade.

Local - Desviantes Sexuais Anônimos:
--- Há exatos 5 dias me tornei adepto da RIPAROFILIA. Para ser mais claro, tenho atração sexual por pessoas sujas ou de condição sócio-econômica deplorável. Meu problema é que - das duas, uma: ou os mendigos se apaixonam e teimam em se assear para me agradar ou têm vergonha de que me deleite em suas imundícies.

Encontro:
--- Pode me chamar de x, mas não me dirija a palavra a não ser que seja extremamente essencial. Não beijo na boca, não gosto de pelos. Se sentir a necessidade de linguar meu ânus, não faço objeções. Tenho cócegas no ventre. Gosto de morder até sangrar. Tenho aversão a meias. Algumas posições me dão cãimbras e requerem alongamento prévio. Não vou demorar mais que 45 minutos, meus filhos saem logo da creche. Prefiro que ejaculem no centro da minha coxa esquerda.

Festa de família:
---Sou um novo homem. Larguei o álcool. Estava perdendo o controle. Agora só tomo 1/4 de ácido, no máximo quizenalmente.

Mas não vá pensar que se trata de desabafo saudosista. Assumo tranquilamente que prefiro as últimas versões remixadas de vários clássicos embotados. Adoro a pop-arte.

Cheguei a desconfiar que fosse falta de atitude, então. Entre a artista performática que come animais vivos de ponta-cabeça enquanto assovia uma cantiga de ninar com a vulva e o filósofo antropofóbico, eu me deslocaria habilmente no meio-termo.

O tiro fatal seria a falta de criatividade. Mas por mais que eu não seja propriamente nenhum babaca purista, neguinho se inspira sem dó nem piedade em obras pra lá de digeridas e regurgitadas. Nota-se mesmo o contrário; artistas consagrados que emprestam seu aval para sair chupando o frescor da juventude em mutação.

Não. Os medíocres e previsíveis me incomodam. Bem como a epidemia de panelinhas de auto-proclamados.

Se não estou em busca de uma cara-metade, hei de confiar cegamente na existência de pessoas complementares.
A que movimento pertencerei eu, afinal?

sábado, 2 de maio de 2009

De repente, aniversário...

Todo ano vinham as perguntas: Passou de ano? Pra que série você foi?
Um lugar fixo para se sentar dia após dia, uma posição entre seus pares na chamada, dever de casa, teste, prova.
Até o futuro tinha data marcada. 2000. O que estaremos fazendo em 2000? Será que o mundo vai acabar antes?
A altura das pessoas ao redor também fornecia boas pistas sobre a idade delas, bastava uma rápida comparação.
Hoje, perdido no além-futuro, as envergaduras pouco dizem das pessoas. Cada um ocupa um lugar numa fila diferente. É uma fila de espera indivual em que o passar de ano é entruncado, enganoso. Você pensa que fez o dever de casa, aguarda pacientemente o seu momento e, como num jogo de tabuleiro, se vê obrigado a retornar 15 casas. Cada vez mais cedo tem gente mesmo que brinca de voltar pro começo. Mas é uma fila de espera individual.
Há os que acordam com 15 anos e dormem com 90 e vice-versa.
Acabei de olhar pras paredes brancas, manchadas e elas não souberam me dizer onde estava. Não faço a mínima ideia se tenho satisfatoriamente passado de ano. Aliás, satisfatoriamente pra quem? Alguém bem podia me perguntar, em qualquer época, o que quero ser quando crescer. Olho pra trás e parece que há séculos meus anos não começam em janeiro e terminam em dezembro.
Tenho a súbita impressão de que acabei de fazer aniversário. Assim, de repente. Não há velas, nem bolo. Puxo pela cabeça, faço a matemática. Nada. Deu vontade de ligar pra alguém pra perguntar. Mas parei de crescer muito cedo e desconfio que as pessoas próximas também pararam de acompanhar detalhes sutis.
Fecho os olhos e faço um pedido.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Aliens me visitam pela manhã...

A boca esturricada me lembra de conferir o prejuízo da noite anterior. Só espero ter guardado a porra do recibo do cartão de crédito.
Lentamente ensaio mover a cabeça já em perpétuo estado de rotação sobre o próprio eixo e vislumbro o corpo descoberto de um alienígena nu ressonando placidamente em minha cama.
Será que vale a pena perguntar como veio parar aqui?
Por alguma razão insondável, a visita-surpresa é sempre de alguém mais sóbrio que você.
-Ai minha cabeça...O que aconteceu?
-De que parte se lembra?
-Nenhuma.
-Sério?
-Aham...
-Você perguntou se eu beijava bem e pediu para eu te mostrar...
-Nossa. Queria saber de onde tiro essas cantadas. Mais uma para o meu repertório...Devia anotar.
- Eu até gostei.
- Antes assim, né? Não me leva a mal, vou acabar perguntando tudo de novo...O que você faz mesmo?
- Sou gerente de hotel.
-Ah...E onde mora?
- Nem disso lembra? Moro com minha prima e minha avó no Recreio.
É impressionante minha capacidade de importar seres de todos os cantos da galáxia, por mais perto que saia de casa. Me pergunto se este ao menos tem sua nave-espacial.
- Você sempre bebe tanto assim?
- Dia sim, outro também.
- Que vidão, hein? Não trabalha??
-Não. É uma longa história...
-Tudo bem.

Algumas perguntas adiante, a constatação rotineira. A menos que você se disponha a catequizar o rebento de Krypton, as referências em comum são praticamente inexistentes.

Enquanto boa parte dos homens se pergunta se existe vida em outros planetas, eu tenho plena certeza disso. Aliens me visitam pela manhã.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

A dura vida de um pobre herdeiro

Completei três décadas no início deste ano e NUNCA trabalhei de verdade. Claro que já tive experiências nesse campo, mas nada suficientemente duradouro ou substancial a ponto de garantir meu sustento por qualquer período que fosse. Também nunca fui milionário. Mas como o conceito de riqueza pode ser bastante elástico, vamos a um breve panorama:

1-Não tenho carro e quando estou sóbrio e me vejo obrigado a abrir mão do maravilhoso sistema de trasporte coletivo carioca, acompanho o táximetro atentamente, não por apego ao dinheiro.
2- Não pago aluguel, moro na zona sul, num adorável Apertamento que, reformado, transformou-se num espaço híbrido bastante peculiar. Se conseguir, imagine um misto de sótão/conjugado/quarto-e-sala.
3- Não tenho empregada. Um dos motivos é que a imensidão do meu cafofo me contransge. E, quando morava de aluguel, sentia-me compelido a limpar alguma coisa antes da empregada chegar no afã de dar alguma impressão mínima de higiene pessoal.
4- Nunca tive qualquer aptidão para a cozinha. Resultado: cerca de 90% da minha renda desce pela descarga.

Basicamente é isto. Se um ladrão entrasse aqui em casa, ele daria uma olhada rápida e diria: -Opa, foi mal, ae. Errei de endereço.

Em compensação, se não tenho celulares ou palms de última geração e não frequento academias cinco estrelas, gasto pequenas fortunas em bebida quando saio pela noite.

O que meu extrato bancário tem de limitado, tenho extra em tempo livre, justamente pela ausência da necessidade de trabalhar para garantir meu sustento e alguns pequenos luxos.

Mas está muito enganado quem pensa que é fácil o cotidiano do desocupado. Primeiro porque grande parte das decisões e atividades em que a maioria das pessoas se engaja mecanicamente perdem o sentido. A não ser que você tenha um talento extraordinário para algo e, principalmente, tenha plena consciência dele - o que não é exatamente o meu caso - é preciso encontrar um incentivo adicional para inventar qualquer ofício.

Claro que trabalho e lazer podem ser sinônimos. Mas raramente o trabalho bate à porta de alguém e, se você não tem uma vocação inata para o voluntariado em geral, voltamos à condição anterior, já que nem toda forma de lazer pode ou deve constituir-se em trabalho. Um gênio da computação pode acidentalmente criar um programa que o insira no mercado de trabalho, mas nem todo usuário de computador vai perseguir este fim.

Enquanto busco respostas para dilemas dessa natureza, gasto parte do meu tempo nadando e tentando me convencer de que o ingresso no doutorado em antropologia (visual), se não responde plenamente aos meus anseios, ao menos preenche a recorrente lacuna: O que você faz da vida?

Se você não fosse obrigado a fazer algo para ganhar dinheiro e tivesse todo o tempo do mundo, mas recursos limitados, como você passaria os seus dias?