sábado, 30 de maio de 2009

Orientação Vocacional

Andava pela rua e como se fôra atingido em cheio por um raio, sentiu a noção de felicidade escapar-lhe por completo. ---Devo estar ficando louco, não pode ser outra coisa.
A síndica o previniu sobre o atraso do condomínio. A televisão pifou. Soltou uma gargalhada espontânea que percorreu-lhe o corpo. ---Meu Deus, o que é isso? Possessão?
Tinha de encontrar alguma forma de voltar a si. Nada parecia preocupar-lhe. Acabou pedindo refúgio à bebida. Tomou um porre daqueles. Quebrou tudo no bar, xingou quem ousasse respirar no recinto de tudo quanto era nome.
Acordou pelado na delegacia, sem a mais vaga lembrança do dia anterior. Como comprometeu-se a pagar pelos prejuízos, o dono do bar já acostumado ao ofício não deu queixa e logo o liberaram.
Voltou pra casa. Tomou um banho gelado. Deitado, masturbou-se e resolveu experimentar o próprio gozo. ---Hummm...ontem fui um alcoólatra baderneiro. Hoje vou ser o que?

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Já vai começar...

Eu pude ver o exato momento em que envelhecemos. Olhávamos um para os outros cúmplices de algo que havia irremediavelmente ficado para trás. Cada um a sua maneira, nos associamos recentemente ao mesmo clube. Todos desfrutávamos da acidez de seu status. Sentados lado a lado na escuridão solene do teatro, nossos corações não dispararam quando as três campainhas tocaram ou quando a pomposa cortina se abriu. Estávamos prontos para assistir ao que quer que fosse...

Janaína, a negra estridente esculpida em forma de cintura, era agora o retrato da matrona de voz dócil e domesticada. A virgindade que tanto cultivara fôra-lhe arrancada a fórceps. E não em sua aguardada primeira vez, mas numa clínica clandestina numa rua arborizada do Grajaú. Os dias escorriam por entre seus dedos grossos juntos com a água ensaboada da louça. Ela sequer sentia ódio do marido ou piedade por si mesma. Estava satisfeita em acordar um pouquinho mais tarde a cada dia.

Mariana tinha um currículo dos mais invejáveis. Mas ele não continha casamento algum. E a simples pronúncia da palavra lhe parecia mais e mais ridícula com o passar dos anos. Vestira tantas mulheres para ocasiões especiais. Mas não via mais graça em gastar seus figurinos nos finais de semana. As promessas vãs das noites não a seduziam mais. Estava satisfeita em dormir um pouquinho mais cedo a cada dia.

Eu tinha tantos diplomas ocupando espaço nas gavetas que nem sabia o quê responder aos questionários que indagavam: Ocupação? Eu entendia todas as línguas sem tradução, só não tinha mais o que dizer em nenhuma delas. Estava satisfeito em digitar exatamente as mesmas palavras na internet, varando noites e noites a fio.

Mas nada disso realmente importava de fato. Suspiramos, nos demos as mãos. Um novo ato estava prestes a começar...

segunda-feira, 18 de maio de 2009

As faces do desejo

No começo, a curiosidade. Cada pessoa na rua corporificava uma espécie viva diferente, com suas reentrâncias e saliências, gestos e expressões que carregavam uma multiplicidade de significados difusos. Ainda não se notava a rigidez dos rituais que delineariam mais tarde as paisagens do mundo.
Um dia qualquer ele se surpreende com a invasão de milhões de autômatos sem face reproduzindo tarefas periódicas. Correu para o espelho mais próximo. Deparou-se com a imagem de um alienígena disforme. Era aterrador. Estava sozinho num planeta improvável.
Então veio a fome. Irrascional. Passava incontáveis horas à espreita, rastreando qualquer presa potencial. Nenhuma delas pacificava seus instintos. Era incapaz de compaixão. Devoraria o viço da última das carnes.
Travou batalhas sanguinolentas em suas caçadas. Cada cicatriz de seu corpo aperfeiçoava suas técnicas de combate e domesticava seus medos.
Refugiado numa caverna sombria, pensou ouvir uma voz suave e acolhedora. Encontrara alguém que conhecia sua língua materna ou estava simplesmente delirando?
Sonhou brevemente com uma vida sem sobressaltos. Até quando teria forças para alimentar-se sozinho?
Perguntou o nome da voz que lhe chegava. A resposta foi a última lembrança antes de seu fim.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Vivendo a ficção

Ninguém mais era obrigado a roçar em quem quer que fosse. Transeuntes anônimos sem destino em perpétuo estado de colisão eram vestígios de um passado remoto. Ondas e mais ondas preenchiam as dimensões levando e trazendo dados dos tecelões da personalidade na velocidade da luz.
---Nas últimas 24 horas engordei 400 gramas. Estacionei na página 85 de "Mrs. Dalloway". Consumi 20.000 litros de água. Respondi a 748.371 solicitações. Incorporei 529.242 identidades a minha esfera.
Todos estavam interconectados em algum nível. Não havia vãos na teia. O falso, o desconhecido e o ausente foram extintos por todo o sempre. As incertezas eram reproduções de mitos antológicos.
Ele jamais supusera que os rastros de sua vida prosaica serviriam para ilustrar os compêndios ficcionais do amanhã onisciente.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Os Movimentos

Deve ser falta de senso de direção. O meu é péssimo. Você pode fazer um mesmo percurso comigo 500 vezes seguidas que vou te seguir despreocupado, sem a menor ideia de onde estou.

Porque em matéria de libertação, para alguém que foi educado anos a fio num colégio interno de freiras em plena década de 1980, Henry Miller e Anais Nin podiam ser meus confidentes na idade adulta. Mas o gosto de se deixar dominar pelos sentidos ou pela libido hoje em dia é meio insosso. Toda experiência é instantâneamente nomeada ou debatida à exaustão. Virgens e curiosos negociam e pactuam contratualmente o mais banal dos atos. E o pudor é uma mera formalidade.

Local - Desviantes Sexuais Anônimos:
--- Há exatos 5 dias me tornei adepto da RIPAROFILIA. Para ser mais claro, tenho atração sexual por pessoas sujas ou de condição sócio-econômica deplorável. Meu problema é que - das duas, uma: ou os mendigos se apaixonam e teimam em se assear para me agradar ou têm vergonha de que me deleite em suas imundícies.

Encontro:
--- Pode me chamar de x, mas não me dirija a palavra a não ser que seja extremamente essencial. Não beijo na boca, não gosto de pelos. Se sentir a necessidade de linguar meu ânus, não faço objeções. Tenho cócegas no ventre. Gosto de morder até sangrar. Tenho aversão a meias. Algumas posições me dão cãimbras e requerem alongamento prévio. Não vou demorar mais que 45 minutos, meus filhos saem logo da creche. Prefiro que ejaculem no centro da minha coxa esquerda.

Festa de família:
---Sou um novo homem. Larguei o álcool. Estava perdendo o controle. Agora só tomo 1/4 de ácido, no máximo quizenalmente.

Mas não vá pensar que se trata de desabafo saudosista. Assumo tranquilamente que prefiro as últimas versões remixadas de vários clássicos embotados. Adoro a pop-arte.

Cheguei a desconfiar que fosse falta de atitude, então. Entre a artista performática que come animais vivos de ponta-cabeça enquanto assovia uma cantiga de ninar com a vulva e o filósofo antropofóbico, eu me deslocaria habilmente no meio-termo.

O tiro fatal seria a falta de criatividade. Mas por mais que eu não seja propriamente nenhum babaca purista, neguinho se inspira sem dó nem piedade em obras pra lá de digeridas e regurgitadas. Nota-se mesmo o contrário; artistas consagrados que emprestam seu aval para sair chupando o frescor da juventude em mutação.

Não. Os medíocres e previsíveis me incomodam. Bem como a epidemia de panelinhas de auto-proclamados.

Se não estou em busca de uma cara-metade, hei de confiar cegamente na existência de pessoas complementares.
A que movimento pertencerei eu, afinal?

sábado, 2 de maio de 2009

De repente, aniversário...

Todo ano vinham as perguntas: Passou de ano? Pra que série você foi?
Um lugar fixo para se sentar dia após dia, uma posição entre seus pares na chamada, dever de casa, teste, prova.
Até o futuro tinha data marcada. 2000. O que estaremos fazendo em 2000? Será que o mundo vai acabar antes?
A altura das pessoas ao redor também fornecia boas pistas sobre a idade delas, bastava uma rápida comparação.
Hoje, perdido no além-futuro, as envergaduras pouco dizem das pessoas. Cada um ocupa um lugar numa fila diferente. É uma fila de espera indivual em que o passar de ano é entruncado, enganoso. Você pensa que fez o dever de casa, aguarda pacientemente o seu momento e, como num jogo de tabuleiro, se vê obrigado a retornar 15 casas. Cada vez mais cedo tem gente mesmo que brinca de voltar pro começo. Mas é uma fila de espera individual.
Há os que acordam com 15 anos e dormem com 90 e vice-versa.
Acabei de olhar pras paredes brancas, manchadas e elas não souberam me dizer onde estava. Não faço a mínima ideia se tenho satisfatoriamente passado de ano. Aliás, satisfatoriamente pra quem? Alguém bem podia me perguntar, em qualquer época, o que quero ser quando crescer. Olho pra trás e parece que há séculos meus anos não começam em janeiro e terminam em dezembro.
Tenho a súbita impressão de que acabei de fazer aniversário. Assim, de repente. Não há velas, nem bolo. Puxo pela cabeça, faço a matemática. Nada. Deu vontade de ligar pra alguém pra perguntar. Mas parei de crescer muito cedo e desconfio que as pessoas próximas também pararam de acompanhar detalhes sutis.
Fecho os olhos e faço um pedido.