sábado, 8 de maio de 2010

Mordida de vampiro

Num curto espaço de tempo vivera uma espécie de road movie sentimental. Sentia-se quase um caixeiro-viajante. Foram três relacionamentos-relâmpago em menos de 2 meses. Não era a quantidade que lhe chamava atenção. Já beijara mais pessoas numa noite do que pudera contabilizar. O problema estava na intensidade visceral de cada um destes encontros.

O primeiro do ano foi um treinador de animais selvagens. Não tinham nada em comum. Mas quando viu-se obrigado a opinar sobre o próximo endereço onde compartilhariam a mesma cama após uma semana de convívio, acabou deixando-se levar pelo embalo. Os amigos do treinador prontamente o adotaram e tudo caminhava para um acolhedor retiro espiritual involuntário. Todos eram amistosos, sinceros, não bebiam e viviam numa comunhão feliz. O único porém era o fato de que o amestrador estava tão absorto com o bem estar e a alimentação de seus animais que deixou-lhe morrer à mingua.

O segundo era um fotógrafo. Um antigo amigo. Tinham tudo em comum. Só que havia tanto pudor entre ambos que cada beijo parecia carecer de um consentimento prévio. O ritmo dos dias era lento, como se fossem permanecer noivos pelos próximos 30 anos. O fotógrafo matou-lhe de tédio, congelado no tempo.

O último era vendedor de carros de luxo. Dormiram juntos assim que se conheceram e a química entre ambos parecia capaz de suplantar quaisquer semelhanças e diferenças futuras. Este só pensava na porcentagem de suas vendas e nas suas metas. Matou-lhe de solidão.

Logo depois dessa avalanche amorosa, sentiu-se estranho. Começou a farejar as entranhas das pessoas ao longe antes mesmo de enxergá-las. Não tinha mais fome, nem medo de morrer. Envelheceu séculos sem que sua pele fenecesse. Tornara-se imune ao amor.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Das vantagens de ser louco

Andava à noite pelo mesmo caminho escuro onde já fôra assaltado. O corpo cansado e a cabeça latejando de problemas.
Justo na curva onde não há sinal, depara-se com um louco maltrapilho a falar, parados em meio aos carros, sem ter para onde fugir.
O louco vira-se em sua direção e dirige-lhe a plenos pulmões seus impropérios incompreensíveis.
A distância entre ambos não era tanta.
Devia correr? A prudência indicava-lhe o caminho do medo.
Poderia simplesmente fingir ignorá-lo e esperar de canto de olho o que viesse a suceder.
Aconteceu que deixou escorrer dos lábios um sorriso macabro e olhou para além do fundo dos olhos do louco.

"Se me roubar a paciência e me tirar do sério, quem tem que ter medo de surto é ele!"

Eu não sei ser sentado

Queria escrever... mas estas sólidas paredes brancas me encardem o pensamento.
Queria ler ... mas ao longo do ínfimo percurso entre o quarto e a sala, minha atenção se perde.
quem sabe ouvir música? Pena que qualquer expressão de sentimento no casulo me adormece.

Vou tentar varrer o chão...mas a poeira me entranhou a carne e fincou meus pés no vão.
E se olhasse
as pessoas na janela de janelas infinitas?
Hoje não.
Eu espio, espio, mas ninguém vai me alcançar.

Preciso me esticar... e se não mais couber aqui?
A respiração rareia... é o ar parado que não quer mais entrar.

Então escancaro as portas e saio.
Eu não sei ser sentado.

E sentado neste trem
escrevo, leio, ouço, balanço e respiro.
A caminho de onde não sei.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Baile de máscaras

Incontáveis vezes entramos naqueles salões mágicos. Acreditava conhecer melhor do que ninguém seus códigos. Era um campo de batalha lúdico, repleto de crianças brincando de faz-de-conta. Mas um dia você finalmente descobre o perigo à espreita. Os salões se alimentam de beleza e juventude. Este é seu poder encantatório.
Um belo dia você novamente adentra os salões, só que ciente do inclemente transcorrer do tempo e reconciliado com as pequenas imperfeições que te nomeiam. A brincadeira perde o sentido. As crianças deixam escapar seus pesados grilhões. Todos presos à coreografia da felicidade instantânea e eterna.
Penso: Talvez o amanhecer será nublado.
E livre da fantasia escravizante, eis que pela primeira vez vislumbro alguns poucos adultos perdidos no reino do nunca.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Ilusão de óptica

Acordou da vontade de dormir. Ainda desamparado, mas refeito da miragem perturbadora. Lembrou-se de uma experiência de criança. Lera em algum lugar sobre um ritual simples. À meia-noite em ponto de uma sexta-feira, trancou-se no banheiro e olhou fixamente para o espelho por alguns minutos a fio. Teve a nítida impressão de que a face no espelho adquiria certa malícia assombrosa, como se quisesse seduzí-lo e zombar dele a um só tempo. Nunca ousou repetir a brincadeira para tirar a dúvida.
Agora adulto, sabia que alguns olhares desconhecidos quando fitados por dado período também abriam portais perigosos. Mas não tinha mais medo da brincadeira. A cada nova partida, encarava seu reflexo com mais coragem...até o momento em que os olhares se confundiriam e a imagem fantasmagórica sucumbiria à malícia zombeteira do olhar real.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Amor Vermelho

---Querida, não seja ingênua. O amor não vem de graça. Sabe o motivo da confusão? Você aguarda silenciosamente por um pai e/ou uma mãe que te ofereçam colo, segurança e conforto sem cobrarem nada em troca.
---Que isso? Deus me livre! Eu jamais sentiria atração física pelos meus pais!
---E quem disse que amor e sexo andam de mãos dadas? Já pode ir embutindo o sexo no preço do amor. Não confunda segurança e comodidade com prazer. O sexo é voraz. Com pica ou buceta entre as pernas, come-se o outro. Entregar-se também é uma forma de alimentação. No fundo, todos extraem os néctares de que precisam. Seja de si mesmo ou do outro.
---Humm...Mas qual o preço, então, do amor de pai e mãe, já que nele o sexo não entra na conta?
---Este é o mais caro de todos! Você paga até o último dia da sua vida em análise e ainda morre na pindura.
---Isso tá me cheirando a dor de cotovelo. Nunca experimentou o amor verdadeiro?
---Todo amor é ficção, querida. Verdadeiras são as contas. Sem uma reserva em caixa, você vai à banca rota. Se for compulsiva então, tá fudida e mal paga. Mas eu nunca disse que não vale à pena bancar pra ver. Nunca pagou caro por algo que quisesse muito? Quanta gente é mais feliz no vermelho?

sábado, 17 de outubro de 2009

Meus pêsames

Então acabou. Um embrião abortado. Duas semanas não deveriam ser suficientes para deixar mágoa e decepção onde em tão pouco tempo antes não havia nada. Mas a mais inerte das estruturas uma promessa vã abala.
Respiro fundo. O que foi isso?
Descubro que a gestação interrompida não foi da semente de outrem, mas estive prenhe de mim. Entregar-se, ainda que por breves instantes, desperta virtudes adormecidas. É daí que escorre os leites das mães adotivas.
As cidades inundadas estão vazias. Eu vagava acostumado a seu vai-e-vem. E você se acredita vazio também. Quando a ilha e o porto seguro estão em seu navegante.
Para onde quer que se sonhe ir, o ponto de partida é sempre o mesmo. Este nunca te abandona.
Morre o feto. Precocemente querido. Nasço eu. Uma vez mais perdido. E ainda assim, mais amado. Por seu novo filho.