quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Canção

Era incapaz de concentrar-se em qualquer coisa que fosse ouvindo música sozinho. E as músicas de que gostava faziam sua pele incandescer e palpitar. Não era uma sensação agradável. Era uma forma de dor, ferida. O tempo constante interrompia o traçar do destino e seus contornos jamais vistos ganhavam volume, peso, força e o cutucavam, comprimiam, sufocavam.

Leu no jornal sobre o show do novo cantor. Bateu uma curiosidade pouco habitual. Escolheu uma música aleatoriamente e esperou.

Lágrimas brotaram de uma comporta abissal. Enxergou seu rosto mergulhado apiedando-se onisciente de tudo aquilo que ele retinha e não compreendia.

Quatro frases infantis em francês. Duas perguntas. Nenhuma resposta.

A inocência do passado perdido dava as mãos àquele estranho sem mémoria reconhecido no presente.

Duas perguntas sussurradas repetidas vezes. Onde não alcançava, alguém o esperava.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Mi casa, su casa.

Na cozinha, procurou a faca ideal. Difícil tarefa. Numa casa com não mais que meia dúzia de pratos e umas poucas panelas jamais usadas, a escolha de um talher digno de cortar sua própria carne não é imediata. Um dia se perguntara qual seria a sensação da tomada da decisão. Coração batendo acelerado como um ator numa estreia? Nó na garganta, daqueles de criança sendo obrigada a engolir o choro?

Sentia tranquilidade. Era a paz da certeza, da impossibilidade de se voltar atrás.

Pensou em trocar a faca por uma gilete. As únicas lâminas que tinha em casa eram do aparelho de barbear rosa que usava para se depilar. Riu consigo mesma. Melhor assim. Não gostava de giletes. Imagina a situação: você está prestes a dar fim a sua existência e, segundos antes, acaba ferindo os dedos e soltando um ---PUTA QUE O PARIU! com toda raiva, enquanto chupa o sangue que brota.

Vamos logo com isso, afinal de contas, não planejei nenhum ritual prolongado. Tem que ser no piloto automático. Corta-se os pulsos, bebe-se uns tranquilizantes junto com uma garrafa de vinho, deita-se na banheira com água bem quente e pronto! E eu aqui, preocupada em achar uma porcaria de uma faca...

Alô? Gustavo? (O que será que ele quer justo agora??)
Se eu tenho planos pra hoje? Humm...mais ou menos, por que?
Festa na casa de uns amigos de amigos em Santa Teresa? Cara...sei lá.

---- Pô, não pensa muito, vamos Ju! Tô passando aí agora pra te pegar, não quero nem saber! Põe qualquer roupa que em 5 minutos tô tocando teu interfone.

Isso só pode ser piada. É humanamente impossível tirar a própria vida sendo obrigada a argumentar trivialidades antes com um amigo.

---Pô, Gustavo maneira essa casa. Explica direito quem tá dando essa festa que não entendi nada.

---Ju, não conheço bem essa galera, não. Sei que três meninas e dois caras racham o aluguel, cada um é de um estado. A Cris Plotkowsky é do Sul e faz mestrado em psicologia. Ela tá comemorando a qualificação que rolou hoje. A Cris Laffer é de Brasília. Em dois dias ela viaja pra Austrália com bolsa. O Ricardo é do Recife, trabalha com artes plásticas. A Manu parece que é tradutora e faz cenário numas peças. Se não me engano é mineira. O Eduardo faz especialização em oncologia, um lance com pesquisa em laboratório. Depois você pergunta de onde ele é.

---Essa vista da varanda é incrível, né?
---Com certeza. Eles deram uma puta sorte em descolar essa casa. Deve ser por isso que vivem dando festa.
---Sério? Os vizinho devem ficar loucos.

Um dos convivas escuta e entra no papo.
---Que nada. As velhinhas do andar debaixo visitam parentes todo fim de semana e só voltam na segunda.

---Ju, essa é a Cris Plotkowsky.
---Prazer, Ju. Adorei seu vestido.
---Prazer, Cris. Tô paixonada pela sua casa.

---Então aproveita a festa. Vou pegar teu email pra gente manter contato, volta e meia rola uma reuniãozinha da galera aqui. Deixa eu te apresentar pro resto do pessoal. Você mora com quem?

---Sozinha, num apê de um tio na Gávea.

---E você curte? Nessa vida de estudante nômade, me acostumei a viver rodeada de tudo quanto é gente. Nem sei mais se aguentaria viver sozinha.

---Até hoje eu pensei que aguentasse bem.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Deitado no divã

A psicanalista me lança seu olhar de interesse complacente.
Descobri a psicanálise na faculdade e apesar do imediato fascínio, nunca consegui me afastar da ideia de que a artificialidade desses encontros se fundava em duas bases: na falta de autocrítica de certas pessoas conjugada a uma carência afetiva latente. Numa comédia romântica, ouvi uma piada que traduzia perfeitamente o que eu pensava.

---Contou isso para seu analista?
---Claro que não! É muito pessoal....

Descubro um mapa-mundi pendurado. Quando criança, acreditava jamais ser capaz de andar na rua sozinho. Sentava no ônibus tentando memorizar percursos familiares, mas voltava pra casa derrotado. Este era um de meus maiores temores. Um dia a porta do meu cativeiro seria deixada entreaberta e eu não saberia como partir.

Olho para o movimento dos ponteiros no grande relógio analógico na parede. Demorei tanto tempo para compreender seu trabalho e em breve as crianças o apontarão nos museus como um exótico artefato pré-histórico.

Faço um exame de consciência. O que vim fazer aqui mesmo?

Sim, há problemas pesados demais para se carregar sozinho. Outros parecem inofensivos. Escorrem lentamente por entre as frestas de nossos poros e corroem em silêncio todo nosso interior, como os cupins-de-solo que devoraram meu armário embutido.

À mente surge a imagem de alguns de meus sóbrios amigos. Todos analisados. Os graus de compromentimento com a existência são muitos. Mariana faz análise para a morte da avó, acupuntura para o fumo, cólicas menstruais e ansiedade e yôga para sentir-se menos sedentária. Fábio recorre à análise porque tem raiva de ser pobre e se tivesse mais dinheiro, experimentaria todo esse universo supérfluo-pequeno-burguês que abomina. Juliana se analisa e uma vez por ano pede seu mapa astral completo e gravado em fita como presente de aniversário, toma anfetaminas, às vezes uns ansiolíticos, reveza uns 4 tipos de remédios para dormir, faz pilates, dança contemporânea e recentemente descobriu uma mãe-de-santo ótima em Vaz Lobo.

Eu adoto órfãos. Tenho uma coleção deles. Vão de crianças a velhos senis. Umas gracinhas.