terça-feira, 27 de outubro de 2009

Ilusão de óptica

Acordou da vontade de dormir. Ainda desamparado, mas refeito da miragem perturbadora. Lembrou-se de uma experiência de criança. Lera em algum lugar sobre um ritual simples. À meia-noite em ponto de uma sexta-feira, trancou-se no banheiro e olhou fixamente para o espelho por alguns minutos a fio. Teve a nítida impressão de que a face no espelho adquiria certa malícia assombrosa, como se quisesse seduzí-lo e zombar dele a um só tempo. Nunca ousou repetir a brincadeira para tirar a dúvida.
Agora adulto, sabia que alguns olhares desconhecidos quando fitados por dado período também abriam portais perigosos. Mas não tinha mais medo da brincadeira. A cada nova partida, encarava seu reflexo com mais coragem...até o momento em que os olhares se confundiriam e a imagem fantasmagórica sucumbiria à malícia zombeteira do olhar real.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Amor Vermelho

---Querida, não seja ingênua. O amor não vem de graça. Sabe o motivo da confusão? Você aguarda silenciosamente por um pai e/ou uma mãe que te ofereçam colo, segurança e conforto sem cobrarem nada em troca.
---Que isso? Deus me livre! Eu jamais sentiria atração física pelos meus pais!
---E quem disse que amor e sexo andam de mãos dadas? Já pode ir embutindo o sexo no preço do amor. Não confunda segurança e comodidade com prazer. O sexo é voraz. Com pica ou buceta entre as pernas, come-se o outro. Entregar-se também é uma forma de alimentação. No fundo, todos extraem os néctares de que precisam. Seja de si mesmo ou do outro.
---Humm...Mas qual o preço, então, do amor de pai e mãe, já que nele o sexo não entra na conta?
---Este é o mais caro de todos! Você paga até o último dia da sua vida em análise e ainda morre na pindura.
---Isso tá me cheirando a dor de cotovelo. Nunca experimentou o amor verdadeiro?
---Todo amor é ficção, querida. Verdadeiras são as contas. Sem uma reserva em caixa, você vai à banca rota. Se for compulsiva então, tá fudida e mal paga. Mas eu nunca disse que não vale à pena bancar pra ver. Nunca pagou caro por algo que quisesse muito? Quanta gente é mais feliz no vermelho?

sábado, 17 de outubro de 2009

Meus pêsames

Então acabou. Um embrião abortado. Duas semanas não deveriam ser suficientes para deixar mágoa e decepção onde em tão pouco tempo antes não havia nada. Mas a mais inerte das estruturas uma promessa vã abala.
Respiro fundo. O que foi isso?
Descubro que a gestação interrompida não foi da semente de outrem, mas estive prenhe de mim. Entregar-se, ainda que por breves instantes, desperta virtudes adormecidas. É daí que escorre os leites das mães adotivas.
As cidades inundadas estão vazias. Eu vagava acostumado a seu vai-e-vem. E você se acredita vazio também. Quando a ilha e o porto seguro estão em seu navegante.
Para onde quer que se sonhe ir, o ponto de partida é sempre o mesmo. Este nunca te abandona.
Morre o feto. Precocemente querido. Nasço eu. Uma vez mais perdido. E ainda assim, mais amado. Por seu novo filho.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Não, meu bem, não adianta bancar o distante: lá vem o amor nos dilacerar de novo*

eu fico me lembrando daquele dia que você disse que a gente não tinha jeito de ficar junto, Marcel.
eu lembro como senti alívio de pensar que você estava gostando de outra pessoa e que eu, finalmente, estava livre de você, daquele sentimento escravizante.
eu sempre soube que a gente não nasceu pra ficar junto mesmo.
eu sei, na hora que a gente se reencontrou, eu não te quis, é verdade, por que quando você me quis, e foi sincero, já era tarde demais, eu tinha mudado.
mas sei, também, como acostumei ter você por perto. você dividia comigo o sorvete e o peso das relações frutradas que tínhamos vivido. aquele nosso ensaio de namoro foi só mais um...
eu gostava de deitar a cabeça no teu ombro, quando estava do teu lado e gostava de sentir aquela coisa familiar que se perdeu faz tempo, mas que, pareço, cabeça no ombro, por um instante, recuperar.
hoje eu rio, mas na época eu sofria, por que você estava comigo e com as outras. eu aprendi, com esse teu tratamento, a te tratar de um jeito que tanto faz.
nunca foi vingança, nem maldade... só indiferença. a gente fica um tanto indiferente quando aprende a desamar.
a gente ficou machucado um do outro. acho tudo isso super descabido de dizer, agora, depois de tanta mágoa, mas eu queria me curar.
hoje eu sei que todo mundo carrega uma dor, por isso fica chato, ressentido, vira bandido, ou vítima. hoje em dia, eu respeito, cada um carregando a sua dor atravessando a paulista.
se tu se lembrar de rezar, reza por mim, pro meu coração cicatrizar. quando eu lembro de rezar, certeza, rezar por ti.
eu sei, que to dizendo tudo isso... é por que faz tempo que a gente não se fala, mas o que eu queria mesmo era o telefone da bárbara.
o gustavo vai dar uma festa na casa de praia e eu vou perguntar se posso ir com ela.

Beijos, Joana.

* Citação do Caio Fernando Abreu; Texto de Deise Anne - http://muitomeagrada.blogspot.com/

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Tempo ao tempo

Ela nunca desejara tanto ser plenamente ignorante. Tapadinha, mesmo. Ele lhe dizia: ---Calma! Nos conhecemos há pouco...dê tempo ao tempo.
Nesses momentos, olhava para a íris dos olhos dele. Não eram os olhos que enxergava. Era o futuro. Um futuro que não valia a pena prever...
Amou-o muito antes de conhecê-lo. O que ele não sabia é que era um personagem. Ela desejara cada reentrância de seu corpo imperfeito, os tons de sua pele, sabia as frases que diria, como se vestiria, conhecia os passos de seu caminho.
Uma situação em especial deu-lhe a certeza do que pressentia. Entrava na casa de Marcel pela primeira vez. Era domingo. Mas não era mais um domingo de todos os domingos. Porque em todos os domingos ela tinha a estranha sensação de que alguém estava fazendo, pensando e dizendo coisas que pertenciam à sua vida. Era como se faltasse um ingrediente mítico. E estava grande demais para acreditar em contos de fada e histórias da carochinha.
Mas tão logo Joana pisou no quarto, Marcel mostrou-lhe uns vídeos que pesquisara na internet. Naquele momento, ela teria de se pronunciar de fato sobre uma de suas conversas imaginárias. Opinaria sobre as músicas que não encontrava porque precisariam ser compartilhadas.
Antes mesmo do cair da tarde, vieram as discussões. Uma seguida da outra. Marcel acreditava piamente tratar-se de caprichos, provavelmente contornáveis.
Ela desejou mais que nunca a ignorância. Não precisava conhecê-lo a fundo. Nem outro dia sequer. Ele era um personagem meticulosamente criado. Impossível dizer-lhe que ela já podia sentir a flechada em seu calcanhar...A flecha estaria embebida no único elemento que lhe escapara em seu Adão. Uma minúscula dose mortal da realidade que o trouxera à vida.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Bagagem extra

Sentado no divã, desabafou ao longo de 2 semanas, em quatro sessões de 50 minutos, uma série de questões desconexas. Precisava dizer quem era e como tinha se perdido.
Os problemas diários não o atormentavam mais do que de costume. Ele queria dizer que seus momentos mais felizes foram frutos de opções insensatas. E que tinha medo de ter desistido do incerto. Em alguma curva do caminho parecia melhor esperar o tempo passar. Estava cansado. Nada além disso.
Não contou nada de novo, nada que não soubesse de cor. Como a repetição de fatos ancestrais o ajudaria a encontrar-se?
Não era o que dizia. Havia um peso invisível. Um peso em formato de gente. E o peso o expulsara de si.
Resolveu sair um pouco do casulo. Mas não eram justamente essas escapadas que o levaram ao divã?
Por um momento sentiu que não tinha mais o que dizer. Precisava viver. A análise lhe parecia muito com a escrita. Escrever era um pouco como afogar-se. Você congela o tempo e esse poder lhe faz perguntas em silêncio. Se escrever e analisar-se eram a pausa da vida, como conciliá-los todos?
Ainda haveria algum espaço para a expontaneidade lá fora? Sentia-se ridículo. Então ser adulto era isso....Arrastar correntes, tomar remédios, lamber as feridas.
Terça-feira, meia-noite. Uma vez mais resolveu entregar-se ao ritual profano. Jurou que chegaria sóbrio, ao menos.
Entrou. E ainda sóbrio, sentiu uma sensação verdadeira. Não era fuga. Ele queria estar ali. De alguma forma aquilo ainda fazia parte dele. Não era mais o mesmo e sabia disso. Sabia disso.
Pediu uma garrafa de champagne. Tentaria confiar nas bolhas douradas uma vez mais, embora mesmo elas já o tivessem traído.
Ele não estava ali à toa. Repetia o ritual que passara a temer, mas estava um pouco mais leve. E fazia toda a diferença. Expontaneidade era confiança. O ritual era o mesmo, os participantes eram os mesmos, o coro era o mesmo. Mas ele tinha escolhido estar ali. E era dono de si. Daquele que não conhecia e que havia entrado em total letargia.
Encontrou os olhos verdes. Apenas sinalizaria o reconhecimento. Eu não te conheço, mas te vejo. SEI que você existe. Mas não se entregaria a jogos.
E quando se falaram casualmente, uma porta se fechou e outra se abriu. A partir dali, voltava a viver a ficção.